segunda-feira, novembro 22, 2004

Negrume de Ser - Cap. IV

A solidão faz parte da minha vida. Já não sei viver sem ela. Olho o rio que corre. As pessoas à minha volta ora caladas e pensativas ora dinâmicas e alegres. Crianças que saltam, riem, falam sem parar. No seu olhar brilha a esperança, um sonho, muitos sonhos, uma vontade única em triunfar, em ser feliz. Caminho muito lentamente. Os meus ossos estão cada vez mais frágeis e doridos. Acompanham a minha decadência, apressam o meu fim. Um dia destes ainda vou ao médico, talvez averiguar um diagnóstico. Quanto tempo? Depois da Lucinda e do Chico terem ido, é indiferente o tempo que me resta. A minha maior representação poderá estar a chegar ao fim, mas isso não me incomoda. A minha melhor actuação. Pena não ter podido fazer outras tantas, ali mesmo, no palco da Trindade. Que estúpida fui eu. Poderia ter decorado Shakespeare e Molière. Poderia ter sido alguém, mesmo sendo velha e acabada. Idiota. Traíram-me. Fui enganada. Pensar eu que o amor era melhor do que um palco. Acreditar eu que o Chico valia todos os papéis, todos os espectáculos, toda uma carreira em ascensão. Achar eu que o amor era a liberdade, a felicidade, a esperança das utopias. Imbecil. O Chico não vale o papel mais pequeno que representei. O amor, no sentido que sempre lhe conferi, é uma utopia, não existe, nunca existiu e nunca vai existir. Só na imaginação de um apaixonado louco, dominado pela ilusão. Só no coração puro de uma criança, de uma jovem inocente como a Lucinda. Só nos livros românticos, nas novelas e nos contos de fadas. Só naquilo que vem da imaginação e do sonho. Nunca na realidade. Jamais uma realidade. O que chamam de amor é um jogo onde se perde e onde se ganha, com vencedores e vencidos, onde cada um tenta dar o seu melhor, onde há sorte e azar, onde uns arriscam corajosamente e outros escondem-se com medo. Um jogo com estratégias, treinos, falhanços, faltas e muitos erros, indicações fora do terreno, apoiantes e críticos, corrupção, mentira... e cada um que se desenrasque à sua maneira porque o jogo não é para "burros" nem inocentes nem inexperientes nem humanistas utópicos. Só joga quem quer, quem deixa, quem não resiste à tentação, como eu não resisti ao charme sedutor do Chico. Depois é sempre tarde para voltar atrás. Já estamos demasiado envolvidos e torna-se impossível viver sem aquele estimulante, que nos dá força para viver, uma alegria falsa que se desmascara logo na primeira discussão, quando lhe falo de teatro, ele diz que não gosta e que eu tenho de deixar aquilo porque não é para mulheres decentes; quando ouço entusiasmada o Requiem de Mozart, ele desliga a música porque a acha mórbida e sem interesse; quando leio Fernando Pessoa, ele insulta-o de bêbado e louco; quando observo surpreendida uma obra de Dali, ele afasta-se porque detesta a arte e porque para ele todos os artistas são malucos, imorais, comunistas, perigosos porque contrariam a ordem natural das coisas, porque têm a ousadia de virar as minhas ideias ao contrário, porque não são normais, porque pensam, porque não se acomodam ao parasitismo da hipocrisia da sociedade. E assim sucessivamente a minha relação com o Chico. A minha vida profissional resumiu-se a dar aulas de Português no liceu. Ensinava a escrever, a não dar erros, como se isso fosse o mais importante.

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