quinta-feira, abril 20, 2006

Memórias

Olho inerte pela janela do meu quarto. O sol ilumina a minha aldeia. Vejo carros a passar. Inúmeras memórias trespassam-me pela mente. Memórias do passado. Memórias de um tempo que não vivi. Memórias de um outro mundo, de uma outra vida. A memória que mais se intensifica é a de um ser que não conheço, que perdi algures no tempo, talvez mesmo antes de o conhecer. Sinto que a minha missão se preenche de memórias que me indicam o caminho a seguir. Sinto que o meu passado me trouxe até aqui com uma finalidade, com um novo ser, mais confiante, mais segura da sua missão, apesar de ainda não saber pormenores sobre a mesma.

Procuro-te mas não te encontro. Tento descobrir onde estás, mas não consigo. Temo que estejas longe e não me venhas buscar. Este desespero por te perder mesmo antes de te encontrar torna-me mais amarga, mais inflexível ou apenas mais racional. Amar alguém por solidão ou carência não me leva a lado nenhum. Amar alguém que não sejas tu é caminhar para a minha própria decadência.

Vejo rostos tristes e amargurados. Pessoas que clamam por uma oportunidade, por uma alegria mas só encontram a dor. Pessoas que morrem desesperadas. Pessoas que não conseguem ver uma luz na imensa escuridão que atravessa as suas vidas. Quero agarrar as mãos dessas pessoas, segurar-lhes e puxar-lhes para um mundo melhor, mas não consigo porque elas se afastam cada vez mais enquanto clamam por socorro. Sinto-me angustiada por não poder fazer nada, nem mesmo consigo levantar a voz e pedir ajuda a Deus. Não quero que essas pessoas sofram. Quero que elas tenham uma oportunidade para agarrar a vida. Quero que elas sejam felizes. Quero que elas voltem a sonhar e a lutar por alguma felicidade. Sinto-me agoniada por nada poder fazer, nem uma palavra de esperança posso dizer. Nada. Nada mesmo.

E é nesta hora, neste momento, que te encontro a ti, meu amor, desolado como eu mas sempre a caminhar. Paras para me dar a mão, levantas-me, limpas-me as lágrimas e impeles-me a seguir-te. Sem hesitar sigo-te, mas olho para trás em busca de um gesto que me anime. Todavia, olhas-me fixamente e pedes-me para não olhar para os que ficaram, os que não podem mais voltar, porque não vale a pena, por muito que nos custe. Confirmo-te com o meu olhar, aperto a tua mão com mais força e imploro-te para que não me abandones num momento tão difícil.

Caminhamos ao mesmo nível, sempre em frente, sem atalhos, sem obstáculos, em direcção ao futuro. Ouço ao longe gritos de socorro, talvez as pessoas que tentei ajudar e não consegui. Choro compulsivamente. Tu também. Não podemos fazer nada e é esta inaptidão, esta incapacidade que nos revolta. Sabemos que se voltarmos para trás nos vamos perder, vamos deixar de ter futuro, não vamos fazer nada de positivo.

Quando alcançamos a estrada, o caminho certo, o caminho da vida e do futuro eterno, não resistimos a um abraço apertado, sofrido, como se só nos tivéssemos um ao outro, como se o resto do mundo tivesse desaparecido, num choro desenfreado.

Olhamos à nossa volta e não vemos ninguém. Tememos que não haja ninguém perto. Os que existiam ficaram para trás e não vão voltar. Os campos estão devastados. Há destruição por todo o lado. Sente-se no ar o cheiro a queimado. Uma catástrofe. Uma guerra. Sabemos apenas que não podemos parar de caminhar, não podemos ficar para trás.

Agora que encontramos o caminho certo seguimos com mais calma, sem nos separarmos, com medo de também nos perdermos. Não conseguimos dizer uma palavra, tão emocionados que estamos. Falamos apenas pelo olhar, pela expressão do nosso rosto, pela respiração, pela força com que apertamos as mãos.

Quando alcançamos uma povoação intacta, não escondemos a alegria de não sermos os únicos, de ainda haver esperança. Esboçamos os primeiros sorrisos. O primeiro beijo. A primeira alegria. Muitas pessoas nos cercam, nos abraçam, mesmo sem nos conhecer. A guerra não chegou ali. Prometemos ficar uma vida e ficámos. Durante longos anos fomos um do outro, completávamo-nos mutuamente, sem nunca nos separarmos. Um amor eterno.

De repente, dou-me conta de que estou noutra vida, noutro local, noutro mundo. E sem ti. Sem te conhecer. Busco em cada rosto um sinal teu. Há muitos traços em diferentes seres, mas nenhum és tu. Se fosses tu eu já te teria reconhecido. Vivo com outras lutas, outras pessoas. Mas não consigo viver sem ti. Não suporto a tua ausência. Onde estás tu, meu amor? Será que algum dia te vou encontrar? Será que cabes nesta vida, neste mundo? Serias tu incapaz de voltar a seguir o caminho, pela estrada certa, sem olhares para trás? Serias tu capaz de me reconhecer e voltar a pegar na minha mão para não mais a largar? Serei eu enganada ao acreditar que vais voltar, que vais ficar sempre ao meu lado? Mas se não existisses por que sentiria eu tanto a tua falta? Por que seria tão difícil de suportar esta saudade? Terás tu seguido um caminho que não te leva a mim?

Apenas sei que cada dia que passa, a dor da tua ausência me consome. A esperança se desvanece. Sinto que tenho de aprender a viver sem ti, como tu próprio me fizeste prometer um dia, caso eu não te encontrasse. Só a promessa que te fiz, a força da minha missão me fazem acreditar que vale a pena continuar a caminhar.

Sandra Bastos

2 comentários:

Esperança Martins disse...

Na tua escrita renasce Vergílio Ferreira e com ele a esperança. Tens muito talento e espero que nunca te falte o estímulo para escrever.
Revejo-me na tua escrita...
Parabéns

Spes

Anónimo disse...

Minha Querida Amiga,

O teu texto comoveu-me, não são só as metáforas e todas a figuras de estilo lá presentes, mas sim a carga nostálgica, emocional e melódica do texto. Lindo! Adorei...

Muitos Parabéns!

Julieta