terça-feira, outubro 03, 2006

Alguém que nos compreende

Nada nesta vida acontece por acaso... mas foi o acaso que traçou o retrato do meu presente ... anos antes de eu ter nascido.
Encontrei-me numa leitura, sem imaginar que me procurava.
Felizmente, nesta vida nunca perdemos a esperança de nos surpreendermos!
Partilho convosco parte do meu achado, a outra parte espera-vos durante a leitura e aí eu já não serei nada... entramos no mundo da poesia e de nós próprios.

"Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!"

Miguel Torga
Livro de Horas

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