"Aqui, onde o mar acaba e a terra principia. Cidade cinzenta, urbe rasa, sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além um zimbório alto, uma empena mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera...
Ricardo Reis senta-se numa cadeira, passa os olhos em redor, é aqui que irá viver não sabe por quantos dias.
O Sol branqueado bate nas telhas. Há quintais com alguma roupa estendida, pequenos canteiros de hortaliças cor de cinza, selhas, tanques de cimento, a casota de um cão, coelheiras e galinheiros. O céu lá está, lívido contra a cor plúmea das nuvens, algumas pessoas contemplando os navios, e o rio refulge em reverberações que deslumbram os olhos. Preso à sua pedra o Adamastor vai lançar um grito, de cólera pela expressão que lhe deu o escultor, de dor pelas razões que sabemos de Camões.
Ricardo Reis está sozinho. Nos ramos baixos dos ulmeiros já começaram as cigarras a cantar, são mudas e inventaram uma voz. Um grande barco negro vem entrando à barra, depois desaparece no espelho refulgente da água. Não parece real esta paisagem.
Lisboa é uma sossegada cidade com um rio largo e histórico, um grande silêncio que rumoreja, nada mais. A tarde passou, a noite desceu, mas não faltam por essa cidade lugares onde a festa continua, com luzes, vinho espumoso, ou verdadeiro champanhe, e animação delirante, mulheres fáceis ou nem tanto.
"Então vamos" - disse Fernando Pessoa. "Vamos" – disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez não ia ser capaz de dar o grande grito.
Aqui, onde o mar acaba e a terra espera."
José Saramago, em "O Ano da Morte de Ricardo Reis"
quarta-feira, março 30, 2005
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